top of page

textos sobre letícia

→ Arqueologia do cotidiano: objetos de uso, de André Parente e Katia Maciel

→ Alô, é a Letícia? de André Parente

→ A medida da casa é o corpo, de Katia Maciel

→ A videoarte de Letícia Parente, de Rogério Luz

→ A terceira via. Entrevista de Fernando Cochiaralle

→ Um mundo aparente, de Jorge La Ferla

→ Eu mundo de mim, de Clarissa Diniz

→ Persistência da consciência: marcas da identidade, de Cristina Tejo

→ Letícia Parente: a videoarte e a mobilização do corpo, de Claudio Costa

→ Retrato de Letícia Parente

 (caderno de Fernando Cocchiaralle - PDF, 1,5MB)

→ Medidas, por dentro e por forade Roberto Pontual (PDF, 56KB)

A medida da casa é o corpo

Katia Maciel

Sinais, estereótipos e costuras de Letícia Parente
O mapa, a casa, o corpo. Geografias propostas por Letícia Parente em duas séries de Xérox. A primeira série, intitulada a casa, é formada por um mapa e três perspectivas de uma casa. O mapa é a colagem de três cidades, Salvador, Rio de Janeiro e Fortaleza, vizinhas que nunca foram, na imagem e na vida da artista. A segunda xérox, da mesma série, mostra o desenho de uma casa em planta baixa. Em um dos cômodos, lemos lugar de buscar o rumo e vemos o espaço repleto de letras N como sinais de bússolas, de Norte, de direção. No quarto abaixo, vemos uma seta indicar sete alternativas contra a solidão e o desenho de sete pequenos retângulos. No ambiente vizinho, lemos diálogos desejados e desenhos de mãos em gestos que apontam para muitas direções. No quarto acima, está escrito idas e vindas, voltas e revoltas e o campo repleto de setas opostas. Em um pequeno espaço em um quarto dos fundos, lemos rituais de purificação à prova de poluição. Finalmente, no espaço aberto na lateral com um círculo branco cercado de escuro lemos sol sempre disponível. Na terceira xérox a casa é apresentada em corte lateral, Letícia desenha um varal para roupa de ervas, uma fiada de telhas de nuvens, tubos de gás e o piso apoia-se em grãos de estrelas e vibrações. A escrita e o desenho fabricam uma casa real como o sonho.

O mapa é a casa, a casa é o mapa na fabulação sensível da artista que, entre idas e vindas, expande seu território em um plano gráfico de escritas a formular uma cartografia de expressão e desejo de diálogos contra a solidão. O esquadrinhar das funções de cada arquitetura, fechada em símbolos e sinais, implica em um acento poético feito na relação entre texto e imagem, nela o texto se faz imagem e a imagem texto. A escrita atua como uma legenda inesperada que contradiz o acerto do desenho, ou é o desenho que revela uma forma que o texto não contém. No desencontro entre o que se vê e o que se lê temos o deslocamento que forma o poema.

Na terceira perspectiva da série casa, a artista cria um poema visual em que telhas, piso e paredes de uma casa são feitos de escritas. É um desenho de casa quase escolar, daquelas vistas nas cartilhas da escola, riscada na folha quadriculada. Aprisionando esta forma vemos quatro linhas que constroem uma caixa em torno do desenho. Ao lado da caixa uma legenda - No fundo do caixão em pés, a casa e o que ela contém. A legenda descreve os elementos que estruturam a imagem, a caixa, a casa e o que ela contém, que no entanto não está dentro, mas no entre, no telhado de palavras.

As telhas vão dormir no telhado
A chuva vai cair nos telhados
O pó vai descer nos telhados
O sol vai bater nos telhados
O vento vai varrer nos telhados
O tamanho deste telhado é um múltiplo de telhas
E perfaz o espaço pelos nossos corpos...

Corpos de telhas são uma síntese que situa o corpo como medida da construção, como as paredes ou o piso estruturam a forma da casa. A casa agrega sentido a um corpo prisioneiro de suas funções. O que seria a casa sem o corpo?

Casa
que casa?

Casa é casca, membrana do fora. Mas, para Letícia, a casa é o lado de dentro. Nas linhas desta arquitetura de letras, vemos a escrita da artista construir uma casa que abriga o tempo.

O telhado guardava
Os segredos do roer do tempo
Será como um cobertor......

O texto dobra e desdobra a sensibilidade poética da artista. Do corpo ao corpo, da casa ao mundo, o que se escreve reverbera o gesto que insiste e a forma que o acompanha. Por meio de uma escrita íntima e pessoal Letícia revela  as linhas da sua própria arquitetura. A casa é o corpo, afirmava Lygia Clark; a casa era o ninho para Hélio Oiticica. Na obra de Letícia Parente, o corpo é um emaranhado onde um ninho se descobre.

Eu armário de mim
Eu armário de mim
Eu armário de mim
Conta de mim o que contenho
Eu armário de mim
Idas e vindas. Voltas e revoltas
Sentei sozinha. Sentei-me com. Assentos com
Consumo a cor dos frutos e os sabores do tempo....

Armário fechado. Armário com roupas pretas, armário com roupas brancas, armário com sapatos pendurados e empilhados, armário de radiografias de tórax, armário de cebolas, armário com cadeiras, armário de papéis amassados, armário com todos os filhos dentro. Estas são as imagens fotográficas do audiovisual Armário de mim. Mais uma vez, a artista cria um repertório dos objetos de uso da casa, armário que guarda, que acumula, que arruma. Separar e classificar são, então, operações domésticas que, no exagero das montagens da artista, dissecam os detalhes de um cotidiano reinventado.

A artista realiza o vídeo In em que entra no armário, se pendura e se fecha.

In

In é dentro, é menor, aconchegante. Dentro do armário cabe a vida toda. As compras, as roupas, o cheio, o vazio, o dentro, o fora. “ Conta de mim o que contenho”

Na obra de Letícia Parente, acreditamos nas tarefas de cada dia, na oração de cada dia, na ciência de cada dia, na política que costuramos na planta dos pés, como a agonia de todos os dias made in Brasil. São formas de resistência: resistência à política do silenciamento, ao fechamento, à tortura dos anos de ditadura, ao nacionalismo econômico a todo custo como hino de uma nação.

País
que país ?

Letícia Parente nasce e cresce na Bahia. Casada, cria os filhos em Fortaleza. A casa do pai é a Bahia. A do marido, o Ceará. A casa de Letícia é o Rio de Janeiro.

Edifício Brasil era o nome do prédio em que vivia em Ipanema quando realizou o vídeo Made in Brasil, em 1975. Uma soma de lugares variados como um só Brasil bordado à mão na planta dos pés. Esta variedade de sentidos guardou o vídeo como ícone de um tempo, uma gente, uma nação na construção e desconstrução do que as palavras made in anunciam. O corpo então é um produto? O país é um corpo? A mão é uma máquina? Made in Brasil aponta para o nacional adquirido como marca daquilo que é nosso e não pode deixar de ser. Marca que dói na agonia do corpo que a recebe sem se mover, incólume ao movimento da agulha que tece na planta dos pés um destino indesejado, com uma ironia de circunstâncias no que há de afeto nordestino do gesto.

Corpo
que corpo é esse?

“o corpo da mulher todo escrito com as suas fissuras, o olhar, os braços”1 Na segunda série Xérox, Mulheres, as palavras delineiam o corpo. Olhos nos olhos, curvas nas curvas, sombras nas sombras, contorno do queixo, cintura. O corpo se dobra sobre si mesmo. Na década de 1980, um vídeo do poeta Arnaldo Antunes afirmava que o nome das coisas não são as coisas. Letícia caminha pelo lado inverso: as palavras são as coisas.

Ventre da alma
Ventre do espaço

Rosto
que rosto é esse?

O rosto é um mapa, afirma o filósofo Gilles Deleuze. O rosto é a interface de um corpo que não se comunica. O rosto confunde, ilude. Não vemos nosso rosto. Vemos todas as partes do corpo menos o rosto. O rosto é construção. Um fragmento com um outro fragmento com um outro fragmento. Boca, nariz, olhos. Aberturas do corpo vedadas pela artista. Então, que rosto é este? É desenho e não máscara, porque não esconde, mostra.

Em outro trabalho da mesma série Mulheres, Letícia reúne fisionomias de mulheres impressas em revistas e jornais, umas com perucas, outras sem, invertendo a situação do modelo, do manequim, na busca por mulheres parecendo manequins e manequins parecendo mulheres, ou uma sequência de mulheres com óculos com um conjunto de propagandas, de estereótipos do feminino. Letícia vira o avesso do estereótipo com os mesmos sinais usados nas construções dos clichês: os objetos de uso feminino são subvertidos e mesmo os rostos são recortados e editados como modelos de uso em situações a serem delineadas como, por exemplo, o sorriso feliz, a boca sentimental ou generosa. Colagem e montagem são processos de uso no trabalho de arte xérox e postal da artista. Estratégias da forma. O modo de construção e o meio de propagá-la perturbam o circuito mediático ao desconstruir e reconstruir suas operações.

Em outra obra em Xérox, Letícia desenha dois colchetes, um aberto, outro fechado, e escreve um me prende outro me solta.

Desta tensão, surgem as obras. O que esta fechado e o que está aberto, o que é povoado, o que é deserto. Seria a solidão a condição feminina?  Entre o marido, os filhos, a química e a arte, Letícia se tranca no armário e inaugura, no silêncio do gesto, o vídeo existencial, experimental e político brasileiro.

A casa

Letícia Parente, artista, química e professora, foi casada 20 anos teve 5 filhos, 14 irmãos e muitos amigos. Além de conhecer as ditas tarefas do lar, como cozinhar, costurar e cuidar de filhos e marido, a moça baiana dirigia, fez parte da juventude católica e trabalhava fora como professora de química, na Universidade Federal do Ceará e, depois, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Tudo isto no Brasil da década de 60 e 70.

Os vídeos que a artista produziu entre 1975-82 mostram imagens que não saem de casa. Letícia Parente tece um fio sútil entre a casa, o corpo e o território sensível da arte. Com agulha e linha, ela costura o Brasil na sola do pé, com o ferro de passar ela refaz as posições entre patroa e empregada e entre roupa e corpo, com o cabide se guarda no armário e com a maquiagem inventa uma máscara que cega. Cada trabalho realizado acrescenta ao vivido e com ele se confunde. A casa é então a família, a religião, o país, a casa é tudo e todos ao mesmo tempo. O que vemos é cru, sem retoques, sem segundas intenções.

Letícia não enfeita os momentos do cotidiano que escolhe. Ela faz passar os dias que passam por ela. Eu sou uma coisa no meio das coisas, me tranco no armário, me estendo na tábua de passar... Ao mesmo tempo subverto. A empregada passa a patroa e meu pé é a minha terra. Neste movimento reside a tensão que caracteriza a obra de arte, um olho que assiste o que é, enquanto o outro insiste no que não é.

Telefone sem fio

Foi com um grupo de amigos artistas – Ana Vitória Mussi, Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Miriam Danowski, Paulo Herkenhoff, Sônia Andrade – que Letícia realizou os primeiros vídeos. Na brincadeira entre amigos, em que uma palavra ou frase é dita de ouvido em ouvido, a alegria e a descontração do grupo é o que mais impressiona e contamina quem assiste a este momento inaugural. Telefone sem fio registra este encontro que inicia a vídeo arte brasileira.

Preparação I

Diante do espelho, a artista inverte a própria imagem, mas não se trata da visão de cima para baixo, trata-se da cegueira no lugar da visão. Letícia cuidadosamente, como uma mulher que prepara a maquiagem antes de sair de casa, cuida de cada parte do rosto. Cola primeiro um esparadrapo na boca e contorna os lábios por cima. Depois, também por cima de cada olho, repete a operação. O desenho no esparadrapo refaz o que esconde. Sem fala e sem visão, a mulher continua armando o cabelo e fixa no espelho seu olho construído e bem aberto e depois deixa o espelho e o banheiro.

In

Quantas vezes já penduramos roupas no armário? E quantas vezes não desejamos nos trancar em casa ou fechar a porta do quarto? O isolamento e o fechamento nos remetem às sensações de angústia, mas também à tranquilidade e à paz. A artista mistura percepções e objetos. Por que não nos pendurarmos juntos com a roupa? Por que não nos sentirmos roupa? Por que não deixar de sentir? Por que não guardar o que sentimos? Ela parece não pensar, ela está apenas fazendo mais uma tarefa do dia: no cotidiano, é uma coisa depois da outra. Ao fechar o armário, a artista se guarda com o tempo.

Filhos

Letícia inclui os filhos em vários trabalhos e de maneiras distintas. André e Angela são mostrados em Especular e em Quem piscou primeiro? Nos dois vídeos, o foco é a troca, de falas e de olhares, a relação entre os dois, quase como uma brincadeira ou uma aposta, um jogo entre irmãos apropriada por um enquadramento preciso, conceitual e poético da artista.

Em O homem do braço e o braço do homem, mais uma vez Letícia grava o filho na brincadeira de simular o mesmo movimento do anúncio em néon de uma academia de ginástica. Este vídeo é uma co-autoria com o filho, que também fotografa outros vídeos da mãe.

Os filhos, espalhados pela casa, falando, comendo, dormindo, conversando, são a origem da casa.

No audiovisual Armário de mim, Letícia coloca todos os filhos –, André, Ângela, Lia, Cristiana e Pedro – no armário e os fotografa.

Tarefa 1

Letícia deita sobre a tábua de passar diante da sua empregada que tranquilamente passa a ferro a patroa vestida, com a mesma atenção nos detalhes de quem passa uma roupa estendida e plana. A artista tem a calma de uma roupa vazia, não se move, não reclama, permanece. Ela é uma roupa qualquer, num dia qualquer. Não há indiferença, é apenas mais uma tarefa cumprida. Na relação entre a patroa e a empregada não há tensão, apenas uma cumplicidade muda.

Nordeste

A artista tenta tirar duas cobras enroladas em lençol dentro de mala de couro, ao som da música de Caetano, No dia em que eu vim me embora. O título e a música nos levam a um Nordeste retirante, ao desgaste da seca e à provisão pouca trazida nas malas. Letícia, baiana e cearense, conhece este Brasil de perdas que encontra refúgio nas grandes cidades. O vídeo é colorido e musical, a forma reforça a dramaticidade do tema, quase interpretado pelo arrastar da mala e pelo rosto da artista escondido por suas mãos na última imagem.
 
Marca registrada

Os pés caminham e, depois, as pernas que se cruzam mostram para a câmera parada a sola de um dos pés. A mão surge com a linha e a agulha que costura as palavras Made in Brasil. Os pontos são firmes como se fosse em um tecido estendido. Sem qualquer hesitação Letícia tece na própria pele o estado do Brasil, um país feito fora daqui, propriedade estrangeira, o Brasil de 1975 estranho a nós mesmos. A pele cede à pressão da agulha que não para. No gesto não há violência, mas coragem e enfrentamento. Brasil é uma casa estranha, nós e outros ao mesmo tempo.

Preparação II

Formulário e vacinas alinhadas. Letícia aplica uma a uma injeções contra o colonialismo cultural, o racismo, a mistificação da política e da arte. É a crítica ao contexto político para além das fronteiras brasileiras. Mais uma vez a artista usa o próprio corpo como suporte do manifesto. Como se vacinar pudesse prevenir os piores males entre nós.

De aflicti

A voz repete a oração. Ora pro nobis, ora pro nobis, ora pro nobis. A cada repetição a fotografia em preto e branco das mãos entrelaçadas na reza é trocada por outra, que também reza. A voz da artista é rouca e pede Ora pro nobis. Nesta prece, a luz surge e desaparece. Na reza não se reza, não há pedidos ou agradecimentos, apenas a ladainha que sussurra, que comove, que aflige. Na repetição dos gestos e da reza há apenas o sentimento da prece.

Letícia Parente olha a casa. Do afastamento e da proximidade deste olhar surgiram alguns dos primeiros vídeos da arte brasileira, vídeos curtos, agudos, breves como relatos íntimos, que vão além da cotidianeidade dos atos que abrigam ao apontar para o que está no avesso dessas ações, o acolhimento da poesia que se repete ao longo dia.

Instalação

Medidas

Um conjunto de estações para medir tipo sanguíneo, a atenção, a visão, a resistência a dor, o tipo físico, o peso, a altura, a respiração, as medidas secretas. Depois da coleta dos dados, o visitante segue para a exposição de  outros dados previamente coletados de jornais e publicações como o livro dos recordes e relaciona as informações. Movimento cronometrado por uma voz que insiste em contar o tempo que passa. A convocação por um público participativo e o humor das informações dos recordes gera um ambiente novo na arte brasileira. Um verdadeiro laboratório experimental em um museu, a primeira instalação de arte e ciência de que se tem notícia no Brasil. Nela o pensamento do corpo ocupa a linha de frente do projeto. Que corpo é este? E em que se relaciona com os outros? É um modelo ou uma cópia? É individual ou coletivo? É o corpo da experiência, produzido, como um produto a mais com marcas e padrões, testado como uma máquina para respirar e resistir.

Arte interativa
Rá Brasil

Em 1984, Letícia cria uma estrutura plana com tubos de ensaios transparentes compondo o mapa do Brasil. Ao toque do visitante, a cor do líquido no interior dos tubos se modifica por meio de reações químicas. Pela segunda vez Brasil é parte do título de uma obra da artista. Agora na forma de um objeto interativo movido pela energia do espectador. A artista experimenta as alterações químicas que podem ser provocadas pelo próprio corpo como campo de energia. O movimento de cores e formas na construção de uma imagem particular e fluida desenhada por uma ação que se torna interior à obra.

Nesta experiência Letícia cria uma interação a partir do gesto, sem o toque não há mudança, cor ou movimento. Trata-se de uma obra interativa ao se construir na relação com o espectador. A artista que já havia na instalação Medidas convocado este espectador a participar do processo da obra, agora inclui a sua ação como parte da obra.

Pelo correio

Letícia Parente tenta enviar a si própria pelos Correios, como obra de arte postal, para participar da XVI Bienal de São Paulo, em 1981. Não sendo permitida a experiência, a artista registra em vídeo o próprio rosto carimbado com o endereço da Bienal.

A artista participa da Arte Postal brasileira também com o envio das suas séries Xérox. Algumas delas descritas acima.

Correio, telefone, jornal, televisão, vídeo foram meios usados pela artista como maneira de problematizar os próprios meios, e não apenas como veículos da comunicação, mas também da arte. Letícia é uma verdadeira artista multimeios, não apenas por se apropriar destes como meio de expressão, mas por questionar os limites entre eles, relacionando-os.

Pelo menos um terço da obra de Letícia Parente em vídeo está desaparecida. Verde desejo (1983) mostrava um menino em um coqueiro e a fome na cidade, Volta ao redor do globo (1981) um jornalista com o jornal O Globo em gestos ritualísticos, Onde (1978 em co-autoria com André Parente) gravava a televisão transmitindo a imagem do que estava sendo gravado como um feedback em loop em tempo real. Em A chamada (1978), Letícia telefonava para si mesma e atendia a chamada em outro aparelho, em mais um deslocamento da artista dos meios de comunicação. Dois espaços são conectados pelo telefone e pela presença da artista, que curto circuita o sistema de comunicação previsto para a comunicação em dois sentidos e que a artista transforma em um único sentido, gerando outra forma de loop, agora em torno de si mesma. Em Pontos (1975), uma caneta desenhada e recortada é costurada no dedo indicador e com ela um ponto é inscrito no papel. Mais uma vez, a artista insiste no gesto da escrita com agulha e linha. Estes são apenas alguns dos vídeos descritos entre os documentos dos arquivos da artista, mas também houveram outros que existem apenas em relatos, como o da filha Cristiana Parente, que registrou a mistura de cores no liquidificador na feitura de um trabalho também perdido.

Ainda assim, o conjunto de vídeos existentes gera um repertório único na vídeo arte brasileira e guarda, hoje, os gestos de uma artista que na arte se sentia em casa.


1 Depoimento da artista ao Instituto de Pesquisa FAAP – Setor Arte
Rio, junho/1985

bottom of page