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textos sobre letícia

→ Arqueologia do cotidiano: objetos de uso, de André Parente e Katia Maciel

→ Alô, é a Letícia? de André Parente

→ A medida da casa é o corpo, de Katia Maciel

→ A videoarte de Letícia Parente, de Rogério Luz

→ A terceira via. Entrevista de Fernando Cochiaralle

→ Um mundo aparente, de Jorge La Ferla

→ Eu mundo de mim, de Clarissa Diniz

→ Persistência da consciência: marcas da identidade, de Cristina Tejo

→ Letícia Parente: a videoarte e a mobilização do corpo, de Claudio Costa

→ Retrato de Letícia Parente

 (caderno de Fernando Cocchiaralle - PDF, 1,5MB)

→ Medidas, por dentro e por forade Roberto Pontual (PDF, 56KB)

A terceira via. Entrevista de Fernando Cochiaralle

"Eu acho que a videoarte é uma manifestação, uma expressão da crise do Modernismo. A datação é relativa, os americanos tendem a incluir o Expressionismo Abstrato já no mundo contemporâneo. Eu penso que o mundo contemporâneo e, portanto a arte contemporânea, tem alguns determinantes muito evidentes, que têm a ver com o pós-2a Guerra Mundial. O principal deles é a invenção do jovem ao longo da década de 1950. O jovem foi uma maneira de se diluir a oposição proletária ao mundo burguês e criar, dentro do mundo burguês, diferenças na esfera do comportamento que pudessem justificar a mudança na permanência. Muita gente diz que a passagem do moderno para o contemporâneo não se deu porque, afinal de contas, ainda estamos no capitalismo. Sem dúvida. Mas a invenção do jovem introduziu uma dinâmica na transformação ética, estética e política, a partir de uma série de sintomas e manifestações, que também apareceram no campo da arte.

Nesse último, podemos considerar o Abstracionismo, mesmo o expressivo, como o Expressionismo Abstrato americano, como uma espécie de poética do sujeito. O sujeito concretista é quase um sujeito cartesiano e um sujeito Pollock é quase a legitimação da existência de um inconsciente, de um interior – não importa, são faces diferentes do sujeito. Por isso mesmo, eles colocam a sua unidade, que vem lá de dentro, projetada, na sua obra, que tem um estilo, e pode ser detectável e reconhecível formalmente.

Isso só pôde ser levado a cabo porque houve a disjunção entre arte e imagem durante um período razoável – que foi o período das vanguardas históricas. Claro que sempre houve um flerte com a fotografia, desde o estudo do nadar. Também com o cinema, a gente sabe disso, mas, de qualquer forma, o mainstream da arte moderna ainda era muito convencional. Você tinha a pintura, a escultura, o desenho. Esse desenho era feito em um retângulo, horizontal ou vertical, assim como a pintura. Era uma espécie de fechamento da janela renascentista. No campo das artes, em relação às transformações do mundo contemporâneo, o pós-2a Guerra e a invenção do jovem cuidaram de um certo desencanto quanto ao projeto Iluminista, de uma sociedade regulada pela razão e pela ordem. Então você vê desde fenômenos como beatniks, Allen Ginsberg, isso ainda nos anos 50, ou mesmo uma vulgata disso, um Rebelde sem Causa, um filme para milhões, Juventude Transviada. O jovem hoje em dia é um problema porque ele tem de durar até o resto da vida. Depois que você fica jovem uma vez, você vai ficar jovem até 75 anos. A invenção do jovem criou uma dilatação, uma coisa estranha na relação com o ethos, com a estética, que justificam a passagem do moderno para o contemporâneo, apesar de você ainda estar em um regime econômico dominantemente capitalista. Mas eu acho que é possível a idéia de que você só mudaria radicalmente com a substituição de um modo de produção dominante por outro, a idéia marxista. Se a gente puser em confronto o que foi empiricamente conquistado pelos dois regimes, vamos ver que em um determinado momento, o regime soviético primava por ter uma música clássica, um balé clássico, tudo clássico, enquanto os Beatles viviam na Grã-Bretanha. Isso operou possibilidades de fraturas ou de fragmentações.

Dentro disso, os meios convencionais da arte moderna se tornaram estranhos a novas alternativas de invenção. Temos de observar que a transição para a arte contemporânea foi introduzida por artistas que começavam ali, mas ela foi vivenciada no interior da transformação da obra de vários artistas. Hélio Oiticica fez isso, ele foi moderno e se tornou contemporâneo. Lygia Clark, Lygia Pape, Anna Bella Geiger, Amélia Toledo. Então não é uma coisa tão simplória, uma nova geração, é uma coisa mais complicada mesmo. Essa volta a um diferencial, a reintrodução da narrativa, alguma coisa que conte algo mais que o que ali está, do ponto de vista espacial, por uma linguagem de formas ordenadas ou desordenadas, algumas bem desdobradas e outras bem menos complexas.

Mas há a introdução de um fator muito importante, que eu acho que justifica o Super-8 e o vídeo, que é a assimilação do tempo na vida social desde o mundo que resulta do Iluminismo, no mundo moderno. A idéia de progresso, de avanço da razão, justifica a noção de obsolescência, que não existia. Eu duvido que na Idade Média uns carros de boi, uma carroça ficassem obsoletos em menos de 200 ou 300 anos. A idéia de que uma coisa vai ser superada e vai ser substituída, no campo da produção, do objeto, do produto, que hoje em dia está absolutamente exacerbada, tem a ver com a invenção desses novos tipos de tema, como a história, no século 17. Quer dizer, agora você tem uma disciplina, você tem métodos específicos, você tem a historiografia para explicar por que as coisas mudam, por que elas se transformam. A introdução do tempo e do movimento certamente teria de empurrar a obra de arte que vem dessa tradição para registros não só técnicos, como a fotografia, como também o cinema e o vídeo.

Vídeo ou Performance?

Naquela época, as performances (que ninguém chamava de performances, eram happenings ou intervenções) tinham por característica um certo desdobramento temporal, que precisava ser registrado, digamos, apenas como memória, ou havia um fotógrafo que pegava a seqüência, ou alguém com um Super- 8, um 36mm, etc. Então, o vídeo é suscitado por uma demanda muito séria, que se dá no campo da experiência artística, que é pensar agora o tempo e o espaço como valores articulados. Não um espaço com um antes e um depois como você pode sugerir no sorriso da Monalisa. Trata-se de um antes e um depois que sustente uma narrativa de qualquer tipo. O vídeo, portanto, é um sintoma, uma resposta de um mundo contemporâneo que é fragmentário, e não mais se caracteriza por um único sujeito com estilo definido. Na época em que começamos a fazer videoarte, nós tínhamos consciência dessas questões, mas não conhecíamos os textos da Lygia e do Hélio, não estudávamos isso. É importante dizer que o pessoal que passou pela Anna Bella, aqui no Rio, de alguma maneira foi formado por uma espécie de terceira via. A via da Anna Bella era mais diretamente internacionalista. Eu li o Kosuth antes de saber o que era um parangolé.

Das outras vias, uma delas era a que vinha de um experimentalismo de origem neoconcreta e a outra era a que resistia a isso por várias razões, até por um exacerbamento de uma posição formalista. Como a Anna Bella nunca havia explicitado para si o que estava operando, ninguém pensou sobre o que seria aquilo. Mas se olharmos o grupo de pessoas que passou por ela, em graus variados é uma terceira via. Paulo Herkenhoff, Letícia Parente, Sônia Andrade. E, naquele tempo, as duas outras vias não favoreciam isso, porque elas estavam ainda, digamos, voltadas para a observação da grandiosidade das questões de que elas eram portadoras.

Muito poucos trabalhos dos pioneiros da videoarte eram performances. Por exemplo, Versus, do Ivens Machado, em que ele e um ator negro ficam em ângulos nos quais a câmera vai fundir a imagem só com o movimento – isso é uma performance, mas é uma performance da câmera. Se não houvesse a câmera, o vídeo, ele não poderia fazer. Preparações, da Letícia, ou quando a Sônia joga o feijão na câmera podem ser considerados performances. Agora, o sentido delas é serem vistas em vídeo. Há um equívoco nessa discussão de linguagem, até porque eu não acho nem que hoje em dia se deva mais falar de linguagem. Nós voltamos para uma neopolitécnia que está no photoshop, que está no sintetizador. Ficar falando de linguagem hoje em dia é bullshit, mas se as pessoas acham que a linguagem do vídeo é filmar em close, editar, colocar efeitos, eu diria que é também uma possibilidade do vídeo registrar simplesmente uma performance. Não poderia aparecer daquele jeito se fosse feita com Super-8, com fotografia ou se pusesse um desenhista, um Debret para desenhar.

Então eu sou contra essa distinção quase aristocrática ou tecnocrática entre high e low tech. Acho isso absolutamente ridículo. Muito mais importante é a situação poética. Lembro, por exemplo, do vídeo da Sônia – a performance da Sônia – tacando o feijão, com uma televisão atrás de si em que, aleatoriamente –isso foi uma coincidência –, ela ligou no Jornal da Globo. Aquilo quase é um comercial, a narrativa tem tudo a ver com o vídeo. Se entrou tecnologia, efeitos especiais ou não é o que menos me interessa. Senão ninguém poderia cantar a capella. O velho Walter Benjamim já saca isso quando ele fala do close. Como é que uma performance de Letícia Parente botando esparadrapos nos olhos e desenhando seus olhos poderia ser vista tão em close, com tanta intimidade, se não fosse em vídeo? Como é que as pessoas veriam ao vivo se estivessem a dez metros de distância? Iriam ver um olhinho bem pequeno ou nem veriam, porque o próprio corpo de Letícia, provavelmente, seria um obstáculo. Então aquilo que eu vejo ali é vídeo.

A contribuição dos vídeos

A contribuição artística desses trabalhos é inegável e eu poderia citar, de cara, a obra de Letícia Made in Brasil, que se tornou emblema de uma mostra retrospectiva de vídeos, diria eu, quase um emblema da videoarte brasileira. Então, se uma obra tem essa potência, eu não preciso dizer nada. Outro exemplo é o sucesso recentíssimo dos trabalhos da Sônia Andrade – recente no sentido de reconhecimento –, que participou de uma exposição no Louvre. O vídeo em que ela enrola um fio de náilon em torno do rosto foi associado pela curadora a Degas. Tratam-se de narrativas ou neonarrativas feitas sobre temas e questões que hoje são candentes e reconhecidas em toda a produção artística contemporânea. A questão do corpo, por exemplo, que está nos trabalhos de Letícia, de Sônia. Esta joga o feijão, enrosca o rosto. A Anna Bella sobe as escadas. Quer dizer, há uma performance, uma ação direta do artista. Agora, uma curiosidade: como é que a Anna Bella poderia subir e descer tantas escadas, externas e internas, se não fosse em um registro feito em vídeo? A linguagem do vídeo é isso também. Eu tive consciência no meu trabalho de que a televisão era um meio de comunicação absolutamente essencial para o Brasil, naquele momento de ditadura, e, por meio da intervenção direta do defeito, tomei como lema o check-out desse sistema. A idéia era introduzir nesse sistema eficiente algo que comunicasse pela falha, pelo defeito, pela falta. Eu também só poderia fazer isso em vídeo. O próprio Herkenhoff, na série Estômago embrulhado, quando ele filma uma notícia de jornal, “Cruzeiro já circula livremente no Paraguai”, lê a notícia, o público lê também, ele come e sai pela rua repetindo a notícia até a memória ficar diluída. Isso é um Globo Repórter no meio da rua. É feito com quê? Carvão, pastel, crayon? Não, só podia ser feito em vídeo! Não poderia ter sido visto de outra maneira se não fosse visto do jeito que foi. E foi concebido para ser visto em vídeo, então é videoarte, sim, e tem qualidades estéticas inegáveis.

Exposição Medidas

Eu não considero Medidas uma exposição de arte-ciência. Não por ser retrógrado ao que se chama arte-ciência, ao contrário, eu acho a arte-ciência retrógrada ao que a Letícia estava mostrando ali. Porque o evidente na reificação desses aparatos de mensuração é que ali eram confrontados normas e seus aparelhos de aferição, supostamente regulados, não com o objetivo de glorificar esse sistema, mas ironizar e até, em certos momentos, implodi-lo. Então quando se fala em arte-ciência hoje, muitas vezes, o que há é uma espécie de rendição ao encantamento, o que é normal, pois as possibilidades que a ciência oferece são maravilhosas.

Mas o que se chama de arte-ciência é quase fruto de uma sedução recíproca e no trabalho de Letícia o que há é uma espécie de tensão explícita e intencional. Até porque essa artista foi a pessoa que eu conheci que mais tinha as duas coisas, a arte e a ciência. Ela era uma química impecável, chefe do Centro de Ciências do Rio de Janeiro, mas sempre deixava claro que essa atividade como artista era o gancho que ela possuía com um outro lado, poético, humano, imprevisível, um lado do risco, da incerteza, do jogo, da aposta, com que normalmente um cientista evita conviver porque ele está muito bem encastelado em todas as suas razões. Em geral, é meio incômodo, do ponto de vista existencial, a pessoa se enclausurar, seja em uma espécie de moto-contínuo de “Eu sou amor da cabeça aos pés” ou, ao contrário, “Tudo tem suas razões”. Ela passava de um estado para o outro muito naturalmente.

Nesse trabalho, ela coloca no campo da arte a tênue película entre essas duas partes da sua vida, o lado doutor, o lado da cientista, e o lado eminentemente sensível. E eu tenho certeza de que se há alguma coisa que a guia e que implode tudo isso é o lado sensível. Então não existe ainda uma rendição, uma ilustração, um encantamento. É um trabalho, como você1 disse, foucaultiano, que submete os instrumentos de aferição da disciplina à implosão pelo seu sentido poético. Porque todo mundo sabia ali que aquilo não tinha nenhum objetivo escrutinador, esquadrinhador. Aquilo era uma coisa sensual, lúdica. Esse trabalho me lembra a obra de Barrio quando ele fez os cadernos-livros e os livros-registros – que ele mesmo diz que não são obras, que as obras são o que acontece ali. Essas experiências são registradas ali com uma seriedade quase de um viajante Darwin do século 19. Só que o Darwin tinha o telos, que era o amor à verdade, aquilo tinha um sentido. Quando Barrio faz aquilo é para registrar o quê? Coisas que normalmente não têm sentido porque nós não emprestamos sentido sensível àquilo. Então ele reifica aquelas experiências do cotidiano agindo sobre elas como se fosse um cientista.

Eu fico pensando que todos esses trabalhos estão criando um novo sujeito, não mais filosófico e epistemológico, mas artístico. Então é como se Barrio, ao anotar feito um cientista como um português imprime um peixe em um papel lá em Lisboa, estivesse sendo como Letícia, trazendo esses instrumentos, essa película, cajuína em Teresina, fininha, entre arte e ciência. Mas não no sentido de rendição, no sentido de libertação."

1 Nota do curador: “O depoimento de Fernando Cocchiarale foi dado a André Parente”.

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