Série Casa
textos sobre letícia
→ Arqueologia do cotidiano: objetos de uso, de André Parente e Katia Maciel
→ Alô, é a Letícia? de André Parente
→ A medida da casa é o corpo, de Katia Maciel
→ A videoarte de Letícia Parente, de Rogério Luz
→ A terceira via. Entrevista de Fernando Cochiaralle
→ Um mundo aparente, de Jorge La Ferla
→ Eu mundo de mim, de Clarissa Diniz
→ Persistência da consciência: marcas da identidade, de Cristina Tejo
→ Letícia Parente: a videoarte e a mobilização do corpo, de Claudio Costa
(caderno de Fernando Cocchiaralle - PDF, 1,5MB)
→ Medidas, por dentro e por fora, de Roberto Pontual (PDF, 56KB)
A videoarte de Letícia Parente
Rogério Luz*
Revisito-me, de memória, na exposição de Letícia Parente, no MAM do Rio, em 1976: as medidas do corpo dócil, a rebeldia da arte que as transforma, a matéria de pensamento no visível.
Michel Foucault descrevera os procedimentos disciplinares durante o século XIX, na Europa, em especial os discursos de produção de verdade e os dispositivos de poder e subjetivação. Em Medida, a arte aparece como resistência à disciplina. É intervenção localizada no tempo presente e também ruptura com uma concepção, ainda vigente àquela época entre nós, da arte como intuição inspirada e excelência da forma.
Os trabalhos de Letícia não cedem terreno, porém, ao logos discursivo. A artista cria, antes, um plano de experiência que anota, solicita ou promove uma atividade física e mental. As categorias ideativas – por exemplo, a ciência das medidas dos corpos, seus procedimentos estatísticos e a crítica dos saberes humanistas na concepção de sociedade disciplinar de Foucault – não podem ser tomadas como princípios da obra a que a experiência sensível deveria conformar-se. Ciência e pseudociência entrecruzam-se, sem solução, na leitura e na participação que o trabalho de arte convida o espectador a cumprir, como um trajeto possível. Trata-se, para a arte, para sua recepção normalizada, de um retorno à experiência: lugar e momento de descoberta e não origem e destino de um percurso didático.
Não se trata aqui de examinar – outros já o fizeram, e bem – os diversos aparatos que Letícia montou, por meios e seguindo táticas diferentes, para desencadear suas intervenções. Trata-se de extrair deles uma estratégia de ação poética, sem dúvida ligada, de um lado, a seus interesses científicos e a sua visão crítica de nossa sociedade e, de outro, ao contexto de sua prática artística e à situação da arte naquela fase histórica.
O interesse recairá em sua conhecida produção de videoarte, na articulação de duas dimensões: o modo de apresentação das imagens, tanto visuais como sonoras, e o tipo de pensamento que esse modo implica, em especial a questão, mais que secular, do uso do conceito em arte e de seu caráter reflexivo, que retorna ao sujeito em sua agora incerta subjetividade.
A exigência histórica de reexaminar formas de articulação entre sentir e pensar é um dos dínamos que movimentam a revisitação da obra da artista, que abre perspectivas para compreender as metamorfoses da arte, de sua prática e de sua teoria, ou melhor, da arte como metamorfose, na temporalidade de suas passagens e transições, insubmissa à mera determinação histórica de formas estéticas, sociais e políticas. Um pouco de tempo puro.
Se os trabalhos da artista registram configurações de forças, no entrevero de corpo e coisa, sujeito e mundo, não visam, como dissemos, a ilustrar ideias interpretativas da história do Ocidente, nem a deduzir delas produtos de arte. E acrescento: a artista não obedece à lógica do design.
Explico: uma parte importante da produção artística atual conforma-se a um desígnio que contenha, desde suas instruções, o resultado final projetado. Este será, então, oferecido ao público – espectador ou participante – para que o processe de acordo com as regras de um modo de usar. A indeterminação e a ambiguidade de muitos dos trabalhos de arte contemporâneos funcionam de duas maneiras: ou como componente integrado ao uso prescrito ou como resíduo sem importância da natural multiplicidade empírica das leituras. Para efetivar a compreensão da obra e a participação nela, causas e efeitos devem estar previstos, isto é, conceituados e transmitidos por palavras ou outros sinais decodificadores, referidos ao âmbito interno da arte ou ao entorno social.
O problema do papel do conceito em arte – e não apenas, na época, da arte conceitual como movimento histórico – apresenta desdobramentos inéditos em nosso país. A arte dos anos 1970, tal como compreendida por Letícia Parente e outros artistas, expõe a originalidade de um encaminhamento quanto à integração da ideia à composição da obra: experiência do sensível que não se curva seja ao fascínio da bela aparência, seja aos ditames do pensamento crítico. No rigor de suas propostas, a arte de Letícia enlaça a imagem sensível a um pensamento que vai além do repertório de ideias diretoras, matrizes explicativas ou justificativas conceituais.
As ideias entram ali ao lado de outros materiais e ganham novas significações, dependentes do contexto interno da obra, antes de se articularem à situação pessoal e social em que se inscrevem. Conceitos são submetidos à sensibilidade, como material de trabalho, isto é, matéria-prima a ser transformada. Não servem como modelos ou padrões de organização para o informe sensível. São dados à e por meio da sensibilidade, no espaço e no tempo da experiência. Formulações filosóficas, políticas ou religiosas indicam dobras que podem ser acolhidas no próprio elemento poético da obra.
Diante de propostas contemporâneas de arte, muitos criticam a necessidade de textos explicativos para sua compreensão. Em Letícia, o texto não é explicativo porque não é exterior à obra, mas um indicativo que a integra. É um de seus momentos, muitas vezes iniciais e desencadeadores. Isto o caracteriza como parte do acontecimento da obra. Cabe, a cada vez, reintegrá-lo como tal, como constituinte material entre outros.
Se, por um lado, a artista evita que a ideia, para dar relevância à existência do trabalho, passe a servir de justificativa exterior, por outro lado, a experiência de jogo, própria da arte, não se confunde com aquela proporcionada por games ou gadgets. Ao longo da obra da artista, a crítica e o humor estabelecem a diferença.
Não creio, porém, que houvesse necessidade, para Letícia, de uma explicitação da questão do lugar da ideia e do jogo na arte. A prática dos criadores mais significativos do período preocupa-se, antes, com produzir uma abertura corajosa para a concepção e o destino da arte. Os trabalhos de Letícia, ao veicularem novas propostas e utilizarem meios e técnicas diferentes daqueles encontrados nas chamadas artes plásticas e visuais, introduzem, no campo da arte, experiências em aberto.
A interatividade, nas novas práticas artísticas que se atualizam no período, faz do espectador passivo um agente participante, que deve não apenas receber o impacto sensível para elaborá-lo, mas construir, na mente ou nos gestos, o próprio trabalho de arte, isto é, efetuá-lo para que indique um sentido, integrando-se, por esta via, ao processo.
Toda estética – toda recepção do trabalho de arte, que tem por complemento uma poética, um modo de fazer – exige interatividade. Ação e paixão se respondem e se complementam e isto implica em atividade mútua – sensível, emotiva, intelectual – diferida ou simultânea. A questão aqui é outra: a das novas modalidades de interação que os diferentes dispositivos poéticos introduzem na apreciação da arte.
Com o propósito de interferência no circuito e no mercado, a arte do período a que Letícia se articula é uma arte social, mas não ideológica ou política, no sentido corrente. Para tanto, a artista põe à prova novos meios de ação no uso da tecnologia. Longe de esta ser incensada como índice de progresso, a ela é imposto um sentido conscientemente pobre, que exige da recepção mais do que a conformidade à excelência formal no trato das técnicas de feitura.
É certo que os artistas que primeiro experimentaram o vídeo entre nós não dominavam a linguagem do corte e da montagem, institucionalizada pelo cinema narrativo clássico. De qualquer maneira, estavam longe de pretender aplicar a seus trabalhos em vídeo, para além das limitações técnicas do novo meio, fórmulas consagradas.
Cineastas engajados ou de vanguarda procuravam expor os mecanismos tradicionais de construção do filme para criticá-los e subvertê-los. Não era essa, tampouco, a preocupação de nossos artistas plásticos – que os cineastas olhavam, por vezes, de viés, como incompetentes metidos em seara alheia, num momento em que ainda se mantinha a crença na especificidade das artes e, no interior de cada uma delas, dos diferentes gêneros ou técnicas.
A liberdade de lidar com a nova tecnologia do vídeo, sem se importar com cânones e procedimentos estabelecidos de linguagem, nutre-se, em Letícia, não do desejo de uma forma nova de descrever e de narrar – questão do cinema que, se não se esgota em considerações de linguagem, encontra nelas seu eixo –, mas na convicção da eficácia de um modo de abalar hábitos de fruição e compreensão no interior da arte que pratica. Para criticar e subverter comportamentos e instituições, a artista rompe os limites específicos de sua própria prática. Trata-se, portanto, para ela, não de uma nova linguagem para o audiovisual, mas de um novo corpo no mundo e de um novo sujeito no corpo.
A rebeldia é, à época, um valor de combate que acaba por atingir todas as linguagens tradicionais. A crítica diante do que se considera de bom gosto e de qualidade se insurge, no caso do pessoal de cinema, contra a linguagem estabelecida e, no caso dos artistas plásticos, contra os meios consagrados do fazer artístico – desenho, gravura, pintura e escultura –, aos quais se vinha juntar a fotografia. As duas maneiras de encaminhar a crise da representação visual – a partir de territórios ainda específicos, o das artes plásticas e o do cinema – irão se influenciar mutuamente e esbater fronteiras.
Letícia cedo percebe que a expressão não se enraíza mais no sujeito criador ou no domínio de linguagens e técnicas, mas em um mundo socialmente conturbado e injusto, ordenado pelo avanço da tecnologia, a que é necessário propor táticas localizadas de ação poética. Essas não precisam pretender grandes objetivos de mudança para serem eficazes em seu âmbito de ação. As pequenas sequências de intervenções no corpo dócil e disciplinado visam à insurgência no campo dos afetos, no momento em que declinam as grandes narrativas explicadoras da realidade.
Dentro da referência ao contexto, é preciso também incluir a renovação do movimento feminista, nos anos 1970 no país, que envolvia manifestações artísticas e políticas. Passagem de uma crença no papel histórico das massas trabalhadoras para o empenho em lutas situadas, à luz de temas de interesse da sociedade como um todo ou de segmentos simbolicamente minoritários, a visar condutas de resistência e de transformação.
A videoarte de Letícia Parente surpreende pela simplicidade e atualidade. Paradoxo de uma contundência quase tímida. A modéstia dos atos cotidianos – costurar, passar roupa, guardá-la no armário – mostra-se subvertida. Gestos corriqueiros, reservados por vezes às funções domésticas da mulher no lar ou à diversão das crianças, são referência para uma operação disjuntiva: há divergência entre a imagem suposta e a imagem visível, entre o comum e o insólito.
Os créditos são amadores, muitos deles manuscritos numa cartela. A opção é clara e lembra a arte povera italiana do final dos anos 1960 e sua influência na prática direta de uma fotografia que não busca a manipulação dos efeitos.
Para entender tais procedimentos, que não decorrem da ignorância da linguagem tradicional ou da impossibilidade de contar com uma edição competente, é preciso contextualizá-los no quadro daquela busca, realizada pelos artistas da época, de novas propostas de arte. O período registra múltiplas designações para estas: videoarte, arte conceitual, arte povera, arte postal, body art, para ficar em alguns dos exemplos próximos à prática da artista.
A apropriação naïve de uma nova tecnologia e de seus limites assinala, portanto, a ruptura com a edição audiovisual, com seus cortes e continuidades, e retoma certas táticas de construção, gráfica e de movimento, dos primeiros filmes de arte da história do cinema.
Muitos dos vídeos não apresentam corte algum: um único plano acompanha o desenrolar de uma ação inteira. A montagem é interna ao plano e o enquadramento de partes ou fragmentos assinala, sem ambiguidade, a natureza técnica do meio empregado para produzir a imagem. Está-se diante de uma “realidade para a câmera”. Os closes do corpo – quando, com frequência, a artista ou suas personagens não aparecem inteiras – exploram e intensificam uma característica que o cinema produz: a equiparação entre os objetos e os viventes, a pedra e a árvore, o cenário e os atores.
In assimila a mulher que entra no armário à sua própria roupa. Uma interioridade vazia será preenchida pelo corpo e seu invólucro. Ao invés de mostrar um conteúdo para o uso, a exibição para os outros, o armário inverte suas funções e torna-se o esconderijo de um corpo-vestimenta.
Em Tarefa I, a tradicional passagem de roupa a ferro no ambiente doméstico transforma-se na passagem desta segunda pele como envoltório do corpo. A artista deita-se vestida sobre a tábua de passar. O rosto da serviçal não aparece, apenas seu movimento obstinado sobre o tecido e o corpo, como a ignorar a situação inabitual. O enquadramento recorta de perto o que interessa de uma ação contínua e repetida, além de incomum. Tal proximidade dá ao espectador a sensação de participar tanto do registro quanto do conteúdo da ação e, ao mesmo tempo, de recusá-los, porque vê o que não está acostumado a ver, o que não pode ocorrer.
Nos vídeos de Letícia, a técnica deve dobrar-se ao que ela tem a pensar: por exemplo, o tempo histórico da casa e da pátria, que se inscreve, por meio dos afetos, no corpo próprio e na imagem desse corpo. Corpo que é o lugar dos vídeos, o domicílio que eles elegem. As figuras expressivas – rostos, olhos, braços e pernas, mãos e pés – dedicam-se a tarefas e posturas com sobriedade e determinação. O aparato técnico põe-se a serviço do registro, no qual não cabe a exibição de recursos próprios.
Preparação I mostra a mulher ao se maquiar diante do espelho. Ela oculta a boca e os olhos com esparadrapo, sobre o qual desenha, em substituição, nova boca e novos olhos. O rosto artificial, agora mudo e cego, não serve mais ao jogo de esconder para melhor mostrar, próprio da maquilagem. Resultante da pantomima, isto é, de um ato de representar (no caso, de se representar no espelho, de se apresentar ao olhar dos outros), a imagem mascarada mostra aquilo que acaba por tornar inviável qualquer representação.
As obras não pretendem ilustrar os temas: Marca registrada (costura na planta do pé da expressão made in Brasil, com “s”) ou as vacinas de Preparação II são protocolos de experimentação. Os vídeos querem mostrar e experimentar, não argumentar. As declarações de princípio sobre tantos temas importantes – a dependência econômica, a alienação cultural, as diferentes formas de dominação, a situação da mulher na sociedade, as relações com o próprio corpo e o corpo do outro, a casa ou a pátria – transformam-se em declarações de fato. São fatos, visuais, verbais, imaginários, que a máquina atesta. Por isso mesmo, ao constatar o fato e abri-lo à leitura, o feito não será político-ideológico, mas o efeito, sim, este é, sempre, poético.
Considerar tal estrutura intrínseca permite enfatizar, nesses trabalhos de Letícia Parente, a ambiguidade e a pluralidade de seus sentidos. A pergunta sobre as intenções da artista – o que ela quis exatamente com isso? – não tem uma única resposta possível ou não tem resposta alguma. O trabalho causa, de propósito, ruídos e distorções na comunicação corrente, como aparece no primeiro vídeo do grupo de que a artista participou. O Telefone sem fio (1976), jogo de infância, é uma forma de ruído produtivo de diferença e absurdo – e não de um sentido superior – e provoca o riso dos participantes pelos mal-entendidos de uma escuta imperfeita. Sobre fundo de som ambiente, recortam-se palavras e frases dos participantes, sem que importe saber do que se trata: maracujá, Maracangalha, chá-chá, chuchu beleza, Marrakesh, Antuérpia... A linguagem estruturada é posta em questão. O circuito abre-se e resulta em algo aleatório, até a exaustão e o desinteresse, isto é, até a impossibilidade, por mais tempo, de fazer predominar o ruído sobre o contato articulado.
A artista arma situações inusitadas, nas quais o espectador do vídeo se vê envolvido e, mesmo, interpelado. A brincadeira do quem piscou primeiro é subvertida: a imagem das personagens, rapaz e moça, de frente para a câmera é um reflexo no vidro de um monitor de TV. Eles não se espelham ou se vigiam, mas convidam o espectador a fazê-lo. A pergunta do título cria um vidente da cena, exterior à relação dos brincantes: cabe a ele prestar atenção. À primeira piscadela do rapaz à esquerda, o vídeo termina.
Ao contrário, em Especular (1978), o contato natural do olhar é mediado pela tecnologia de um fio agora real. Há remissão virtualmente infinita, en abîme, da declaração de dois personagens, um em frente ao outro: eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim dentro de você. A fala relança, a cada vez, separação e identificação. A fusão será sempre adiada. Na fala e na imagem, confrontam-se agora dois corpos literalmente unidos por suas diferenças de lugar e percepção.
Em O homem do braço e o braço do homem, o confronto entre a natureza da técnica e a natureza do homem se dá em dois tempos, alongados para muito além do conteúdo informativo de cada imagem. O primeiro plano, desenho em néon que encima uma academia de ginástica e pretende recompor, mecanicamente, um gesto de flexão, é acompanhado por um tumulto casual de ruídos de trânsito. No segundo plano, a fragilidade humana, na exaustão de suas forças, enfrenta o narcisismo atemporal da figura luminosa. Só a fadiga do adolescente pode pôr um término silencioso ao engano desta semelhança, à repetição sem história de um corpo publicitário.
A repetição de gestos – seja em sequência contínua, na realização de uma atividade, seja em etapas – ganha mais uma variante no uso de fotos fixas de mãos e de pés, dedos contorcidos nas aflitivas imagens de André Parente. Vários planos dessas quase esculturas em branco e preto se encadeiam: aparecem do escuro e nele se dissolvem, sem que haja linearidade e progressão dramática, apenas a exposição reiterativa de volumes em luz e sombra.
A repetição é, também, recurso sonoro que retorna em círculo ao mesmo ponto. De afflicti – ora pro nobis (1979) serve-se da resposta às invocações de uma ladainha, sem que nenhum atributo sagrado seja ouvido e nomeado. O drama torna-se apelo religioso sem destinatário. Quem intercederá por nós? Ouve-se apenas o ora pro nobis..., pro nobis..., ora pro nobis.
Em 1981, o som da canção de Caetano Veloso, com sua referência explícita à mala de couro forrada, fedendo, cheirando mal, não se conecta, no entanto, com a descrição de um percurso de viagem, no qual se deixaria para trás a terra natal. Aberta, a mala mostra duas cobras sobre um pano branco, talvez perigosas ou repugnantes. A personagem as evita e retira dali, com cuidado, o forro de lençol, para estreitá-lo nas mãos. Sentimentos de estranheza, perigo, proteção e ternura se sucedem. A dissociação entre som e imagem – a partir de uma identidade entre a mala sonora do viajante e a mala visível na imagem – desorienta a leitura de um itinerário. Trecho enigmático de uma ação que resta em suspenso, como na maioria dos trabalhos de Letícia. Apresentação de fragmentos de corpo, tempo, lugar, ação e não representação de uma ideia, uma crítica, um programa.
Em resumo, na videoarte de Letícia Parente, destaco, por um lado, dois modos de operar sobre a matéria sensível: o fragmento e a repetição (de que os duplos por espelhamento são uma variante).
Por outro lado, ao trabalhar no que se poderia chamar de materialidades ideativas – os grandes temas reelaborados no interior da obra –, a artista produz um pensamento dos afetos e uma crítica do que acontece com os corpos, sua intimidade e suas relações.
A arte que ali se efetua recusa, porém, ser princípio de síntese, porque não pode ser mais nem coisa sensível, nem coisa mental – este o traço fundamental de sua modernidade e atualidade. A articulação entre os modos de operar a sensação e os modos de operar o pensamento torna-se um indecidível. O trânsito entre eles – e para além deles – é a estratégia poética pela qual uma experiência estética se abre a quem a interroga.
* Rogerio Luz, professor aposentado da ECO-UFRJ, é pesquisador, poeta e artista plástico.