top of page

textos sobre letícia

→ Arqueologia do cotidiano: objetos de uso, de André Parente e Katia Maciel

→ Alô, é a Letícia? de André Parente

→ A medida da casa é o corpo, de Katia Maciel

→ A videoarte de Letícia Parente, de Rogério Luz

→ A terceira via. Entrevista de Fernando Cochiaralle

→ Um mundo aparente, de Jorge La Ferla

→ Eu mundo de mim, de Clarissa Diniz

→ Persistência da consciência: marcas da identidade, de Cristina Tejo

→ Letícia Parente: a videoarte e a mobilização do corpo, de Claudio Costa

→ Retrato de Letícia Parente

 (caderno de Fernando Cocchiaralle - PDF, 1,5MB)

→ Medidas, por dentro e por forade Roberto Pontual (PDF, 56KB)

​

Persistência da consciência: marcas da identidade

​

Cristina Tejo*

​

Sabe-se que é penoso, senão impossível, fugir de nosso tempo. Apesar da subjetividade nortear nossa experiência no mundo, a conjuntura nutre o olhar e desenvolve o saber que gera o trabalho. Portanto, não seria despropositado ou mesmo leviano afirmar que todos os autores e artistas são frutos de suas épocas, mesmo se suas obras extravasem o entendimento e pertinência para outros contextos e gerações. Desta forma, poderíamos dizer que Letícia Parente se localiza nesta linhagem: sua obra manifesta seu tempo. Seus vídeos tangenciam o redimensionamento das identidades, a relocação de papéis sociais, a utilização do corpo como suporte discursivo, a escalada do consumismo exacerbado e o chamamento para a exploração de novas mídias, aspectos que caracterizam a arte da segunda metade do século XX. Esses elementos, entretanto, se combinam de maneira muito peculiar na trajetória desta artista paradigmática da arte conceitual brasileira e fundamentam historicamente parte da produção atual que lida sobre essas questões.

Sobressai-se a compreensão apurada de Letícia do corpo feminino como alvo de reificação num período de extremo questionamento da posição da mulher na sociedade, uma corroboração das colocações de Simone de Beauvoir de que não se nasce mulher, torna-se. O aprisionamento dos procedimentos de construção visual e identitária femininas é representado a partir de subversões e paródias de situações cotidianas em ambientes domésticos, concomitantemente simples e de alta potência imagética. Em Preparação I, o ato banal de se embelezar para sair transforma-se no vestir de uma máscara. O deslizar do batom não evidencia os traços labiais da artista, mas por ser aplicado sobre um esparadrapo vira um desenho dos lábios, uma representação por cima da parte verdadeira. O delineador desenha olhos nos esparadrapos. A maquiagem assume um caráter de mascaramento. O que supostamente seria feito para ressaltar a beleza feminina apresenta-se como falseamento, enganação.

Em outra performance sem audiência, a artista abre um armário e pendura-se num cabide por meio de sua própria roupa. Neste outro comentário sobre os adereços que podem garantir a feminilidade, fica mais evidente a crítica ao processo de coisificação do humano, já identificado como homo consumericus1. Roupa e mulher confundem-se de tal forma que não se apartam. A vestimenta que ganha crescentemente o poder de definição de identidade e status cola-se no indivíduo, que parece não mais significar nada sem seu símbolo de colocação e expressão. Ainda sob a abordagem da aderência e contaminação da identidade pelas vestes e consumo, Letícia Parente deita-se numa tábua de passar roupa. Seu traje-pele é passado a ferro. Não há truques. A crueza do ato é uma das maneiras de amplificar a urgência de seu discurso crítico, assim como se fazia nos anos 1970, a exemplo das performances desafiadoras e arriscadas de Marina Abramovic e Chris Burden, entre outros.

A contundência da imagem (que é diretamente ligada à verdade, à realidade) é um recurso usado amplamente pelos artistas a partir da segunda metade do século XX. Ver é crer e no caso de Letícia, assim como de muitos outros artistas, a ação vista é a ação praticada. Marca Registrada, trabalho exponencial da artista cearense, apropria-se novamente da pele. Não mais como indistinção entre indivíduo e consumo, mas como superfície escrevente. A artista borda os dizeres “Made in Brazil” na sola de seu pé num grande close da câmera. Mesmo sabendo que esta brincadeira recorrente no sertão nordestino não fere a epiderme e é reversível, o ato suscita apreensão e desconforto. Fica patente o intuito e a carga simbólica de sua performance: o pertencimento marcado com severidade e agressividade que é eternizado em nosso imaginário. A preferência pela língua inglesa e o uso de uma técnica tradicional de sua região natal ressaltam outra questão identitária, a cultural. Uma constante nos debates intelectuais brasileiros desde a independência do Brasil, os questionamentos sobre a influência estrangeira e o colonialismo cultural ressoam fortemente não apenas no país, mas internacionalmente, graças ao processo de independência política e econômica pela qual atravessam diversas sociedades a partir dos anos 1960, além do aumento do fluxo de imigração mundial. Estes tópicos servem ainda de pano de fundo para Preparação II. Uma pessoa aplica em si mesmo vacinas contra o colonialismo cultural, o racismo, as mistificações política e da arte. A ação é seguida do preenchimento de um cartão convencional de vacinação.

“O homem do braço e o braço do homem” assinala uma fase posterior das investigações de Letícia Parente. Seu foco migra para uma discussão mais abrangente do corpo e inclui a afetividade e comunicação como catalisadores de seus trabalhos. O tom assumido nessas obras do final dos anos 1970 pende para o lúdico e assimilam o outro (a artista deixa de ser a protagonista das ações e passa a orquestrar os trabalhos). Neste vídeo, Letícia versa sobre a mitificação da virilidade e da resistência esperadas do corpo masculino. Um anúncio luminoso de uma academia de ginástica mostra o movimento incansável de um halterofilista contraindo seu bíceps, numa clara demonstração de força. Após um período longo de exposição à seqüência repetida do néon, uma imagem de um rapaz de carne e osso copiando o movimento braçal é sobreposta. Assistimos à sua tentativa de manter o ritmo da máquina e sua gradual falha. Seria uma antecipação da discussão sobre gênero que atualizou apenas recentemente os argumentos feministas?

Especular e Quem piscou primeiro partem do espelhamento e complementação como argumento. No primeiro, observamos um processo de diálogo e reciprocidade. Um casal busca clarificar seu processo de escuta. A cada fala a conversa vai se complexificando sem que a dupla escorregue no entendimento mútuo de suas ações. O segundo vídeo coloca um casal de frente para uma TV. Vemos apenas seus reflexos no aparelho de televisão e devemos prestar atenção no causador do fim da brincadeira. Assim que um dos dois pisca o olho, o vídeo escurece e a gincana acaba. Potencialmente um trabalho de percepção, Quem piscou primeiro ativa também a capacidade de olhar para o outro, de se deter no rosto de alguém, mesmo este encontro sendo mediado pelo vídeo. Este aspecto afetivo é arrematado por De Aflictibus, uma seqüência de slides de entrelaçamentos corporais de todos os tipos. Experimentação plástica que se tornou freqüente nos últimos anos, Letícia Parente ritma imagens de fusões corporais com uma frase que mais parece mantra entoado gravemente. A produção contemporânea brasileira atual deve muito à investigação desta artista e de sua geração. A amnésia reinante obstaculiza o surgimento de um experimentalismo pungente e não ingênuo.

 

1. Colocação de Gilles Lipovetsky em Tempos hipermodernos, pp 122.


* Cristiana Tejo é diretora do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães

bottom of page