Série Casa
textos sobre letícia
→ Arqueologia do cotidiano: objetos de uso, de André Parente e Katia Maciel
→ Alô, é a Letícia? de André Parente
→ A medida da casa é o corpo, de Katia Maciel
→ A videoarte de Letícia Parente, de Rogério Luz
→ A terceira via. Entrevista de Fernando Cochiaralle
→ Um mundo aparente, de Jorge La Ferla
→ Eu mundo de mim, de Clarissa Diniz
→ Persistência da consciência: marcas da identidade, de Cristina Tejo
→ Letícia Parente: a videoarte e a mobilização do corpo, de Claudio Costa
(caderno de Fernando Cocchiaralle - PDF, 1,5MB)
→ Medidas, por dentro e por fora, de Roberto Pontual (PDF, 56KB)
Um mundo aparente
Jorge La Ferla
A figura da artista brasileira Letícia Parente começa a gerar um fluxo literário, crítico e analítico, no âmbito das artes visuais da América Latina. Este efeito positivo foi incentivado, também, pela edição em DVD de uma antologia de seus vídeos, bem como por várias exposições e mostras. A obra1 de Parente se mantém atual e seu trabalh em vídeo continua sendo um interessante objeto de estudo e, mesmo, um objeto de culto. (Assinalemos que essa obra se tornou conhecida na Argentina com atraso, tendo sido mostrada recentemente, em Buenos Aires, em diversas retrospectivas)2.
A edição em suporte digital3 de seus filmes produz reações contraditórias, como aconteceu quando da edição em vídeo, em DVD, com reconstituição do negativo de 35mm, do filme Limite (1931), de Mário Peixoto. A satisfação por recuperar e restaurar esses materiais perdidos, centrais na história do audiovisual do continente, materializa-se em simulações digitais que não costumam responder de maneira fiel ao aspecto visual que tinham os trabalhos originais. Tema importante, que testemunha a falta de preocupação das instituições em conservar os acervos audiovisuais em seus suportes originais, uma situação que é dramática em toda a América Latina, considerando-se a produção de vanguarda e experimental4. De qualquer modo, é por meio desta versão híbrida que muitos tiveram acesso, pela primeira vez, à obra de Letícia Parente.
Da seleção que oferece a referida edição em suporte digital, queremos focalizar uma série de três vídeos, na qual Parente, além de realizadora, apresenta-se também como personagem, o que oferece algumas pistas significativas sobre os processos da escrita videográfica. Parente explora, de forma precursora, em meados dos anos 70, um espectro conceitual que combina performance, videoarte, autorretrato e documentário. Essa série de obras se baseia na construção de uma cena autorreferente, por meio de registro com equipamento portátil de vídeo portapack, n qual a artista expõe uma problemática com o corpo que remete às práticas de pioneiros tais como Vito Acconci, Dan Graham e Bruce Nauman, os quais, literal e conceitualmente, colocaram seu corpo em frente ao dispositivo de registro. Foi esta ação performática que propôs diversas poéticas no cinema experimental e na videoarte. O processo de criação que surge a partir de registrar e documentar o próprio corpo por meio da câmera tornou-se um leitmotiv para uma parte da obra de realizadores contemporâneos como Sadie Benning (Girl Power, 1992), Albertina Carri (Los Rubios, 2003), Gary Hill (Incidence of Catastrophe, 1987-88), Jean-Luc Godard (Histoire(s) du Cinéma, 1988/1998), Robert Kramer (Berlin 10/90, 1990), Carlos Nader (Carlos Nader, 1998), Bill Viola (The Passing, 1991), para citar apenas alguns. Nestas obras famosas, seus autores problematizaram uma auto mise-en-scène a serviço de um relato introspectivo, inclusive político, com base numa práxis centrada no olhar sobre os próprios corpos. Desta maneira, Letícia Parente funda uma busca expressiva contemporânea, concentrada na performance e mediatizada pela máquina de visão videográfica. As intervenções sobre sua pele e sua carne são as marcas de uma enunciação na qual, sob a complexa dualidade artista/personagem, sua pessoa se afirma5. Como realizadora e protagonista, Parente revitaliza os procedimentos da inscrição do corpo6 na cena audiovisual, que nos remetem à problemática das estratégias do filmador/filmado7. Uma operação que nos conduz ao caráter narcisist que se afirma no dispositivo do vídeo8, mas que vai além da mera imagem do reflexo especular. De fato, Preparação I (1975) parte da imagem no espelho do rosto da artista, o qual vai se fazendo paródia à medida que se afasta da semelhança com o modelo real. A ação de maquiar-se se aplica aos esparadrapos que cobrem olhos e boca e transformam o rosto em máscara. O apagamento afeta, por fim, a visão e a palavra convertidas em trompe-l’oeil, substituindo o modelo real, isto é, o rosto da artista.
No antológico vídeo Marca Registrada (1975), Parente perfura a pele da planta de seu pé com uma agulha cuja linha vai traçando, tipograficamente, o slogan Made in Brasil. Esta inscrição no corpo da artista a apresenta como uma manufatura nacional. Lembremos que essas obras foram realizadas durante o anunciado final da ditadura militar, momento de crise e mudança lampedusiana9 rumo à chamada abertura política, decretada em fins da década de 1970. À época, diferentemente da Argentina, o Brasil já se projetava como potência econômica e industrial. As manufaturas brasileiras, como as chinesas, preparavam sua futura invasão dos mercados do Terceiro Mundo, que convertia ambos os países, a partir da primeira década do terceiro milênio da chamada globalização, em destacadas forças econômicas. Esses produtos feitos no Brasi evidenciavam o contraste entre um projeto industrial e a marca que registrava nos corpos um projeto econômico e político firmado no autoritarismo e na repressão, mas que se manteria estável, superando a transição de um governo de fato para governos civis, desenhados sob medida pelos militares. O valor político de Marca Registrada se mantém vigente, como testemunho do que ocorreu no Brasil nessas últimas décadas10.
Preparação II (1976) retoma a ação de uma agulha sobre a pele do corpo da artista, embora se trate, desta vez, de uma incisão mais profunda, produzida pela agulha de uma seringa hipodérmica, aplicada pela personagem Parente, através da qual são inoculadas substâncias líquidas. Essas vacinas oferecem anticorpos críticos contra os preconceitos que envolvem a arte, no contexto do marco político e cultural do momento11 e que ainda predominam nas artes da região. Novamente aqui, Parente questiona ideologicamente o contexto da incipiente abertura em direção a uma democracia controlada12. E, como sempre, sua pele é a zona de fronteira entre o eu da autora e o entorno conflitante. O corpo se oferece como área de intervenção para ações que se realizam para serem gravadas pela câmara de vídeo. É desta forma que a obra de Parente propõe um relato recorrente, que se inscreve na estratégia de confrontação realizadora/sujeito e personagem/objeto, por meio da operação artística de sua própria performance para a câmara. O plano único suprime a edição e a fragmentação da captura da imagem, pautando o transcurso da tomada pelo tempo real do registro da ação. A funcionalidade daqueles primeiros equipamentos portáteis possibilitava operar em um entorno íntimo; eram o meio para pôr em tensão o privado, o in do quadro, com o outdoors do público. A leitura política do nacional se estabelecia pela conotação desconfortável do desenquadre. Nesta tensão do quadro concentra-se a eloquente mensagem de Parente. A intervenção em seu próprio corpo é o ato de contrição pelo qual se encena um exterior, a partir do seu próprio entorno pessoal, contíguo ao conflito entre entorno pessoal e contexto do Brasil dos anos 70.
Podemos considerar essa série de vídeos como forma de registro documental, que remete à figura de um personagem, encarnado pela própria autora, a realizar ações para uma câmara fixa em um espaço interno. Tal postura, em aparência minimalista, é a expressão eloquente de um discurso comprometido e intenso, que poderíamos situar como uma forma de autorretrato13. A ação sobre seu corpo implica um discurso existencial na visão de um mundo de aparências duvidosas e de sentido suspeito. Esta combinatória é relevante para a época atual, em que a produção audiovisual do Brasil, na segunda década do terceiro milênio, costuma temer o dissenso ideológico. A combinação de visada existencial do autorretrato e de crítica política está fora de moda. A conivência com a continuidade do projeto cívico-militar de construir uma nação industrial produtora de manufaturas globalizadas é a regra que, além do mais, facilita a visibilidade no campo das artes audiovisuais. Essa sistemática que Letícia Parente propôs, talvez mais sutil e perdurável que a do ostensivo Cinema Novo, reenvia-nos a um discurso artístico crítico e de vanguarda. Memorável raridade que nos confronta com uma atualidade regida pelo capitalismo new age, que impõe um amplo consenso nacional desprovido de qualquer crítica ao destino histórico de um país produtor de manufaturados, Made in Brasil, para um mundo perfeito.
Bibliografia
1 Além de seu trabalho acadêmico enquanto cientista, Parente tem uma ampla obra artística, composta por gravuras, pinturas, arte postal e vídeo.
2 Made in Brasil, Três Décadas do Vídeo Brasileiro, FUNCEB, Fundación Centro de Estudios Brasileiros Museo de Arte Moderno de Buenos Aires, 2005; Em Transe. Festival Latinoaméricano de Cortos, Fundación Universidad del Cine/Centro Cultural Rector Ricardo Rojas-UBA, 2007; Brasil Audiovisual, Espacio Fundación Telefónica, 2011.
3 Letícia Parente. Vídeos (1975-1982), N-Imagem (Núcleo de Tecnologia da Imagem da Escola de Comunicação da UFRJ), Rio de Janeiro, 2008.
4 “Falar do vídeo e do cinema experimentais na América Latina significa falar de um duplo deslocamento. De um lado, por serem latino-americanos, esse cinema e esse vídeo sofrem a maldição de um quase completo desconhecimento: não há distribuição, não há acesso às obras, a informação existente é mínima e a crítica ou a análise são quase nulas”. Arlindo Machado. Vozes e luzes de um continente desconhecido. Visionários. Audiovisual na América Latina. In: http://www.itaucultural.org.br/visionarios/textos/por/texto_arlindo_por.p 5 Lembremos da obra do artista australiano Stelarc que centraliza sua proposta crítica em ações sobre seu próprio corpo ou o remake, como homenagem a Letícia Parente, que propõe Eduardo Kac em sua proposta Time Capsule, S.Paulo, 1997, quando introduz um chip em sua perna com uma injeção subcutânea.
6 Galuppo, Gustavo. La inscripción del cuerpo en el video argentino. In: La Ferla, Jorge (org.) Historia Crítica del Video Argentino, E.F.T./MALBA, Buenos Aires, 2008; Santaella, Lucia.Corpo e Comunicação. Sintoma da Cultura. S.Paulo: Paulus, 2004.
7 Comolli, Jean-Louis. El anti-espectador, sobre cuatro filmes mutantes. In Yoel, Gerardo (org.) Pensar el cine 2. Cuerpo(s), temporalidad y nuevas tecnologías. Buenos Aires: Manantial, 2004.
8 Krauss, Rosalin. Videoarte: la estética del narcisismo. In Sichel, Berta (org.). Primera generación. Arte e imagem en movimiento (1963-1986), Madrid: MNCARS, Museo Nacional Centro de Arte Sofía, 2007.
9 “Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”. Il Gattopardo, de Giuseppe Tomasi de Lampedusa. “Gatopardista” ou “lampedusiano” é uma expressão presente nas ciências políticas, designando uma doutrina reformista que, alterando partes de uma estrutura, pode assim conservar o todo em épocas de crise.
10 Lembremos que, hoje em dia, segunda década do terceiro milênio, os sucessivos e recentes governos populistas não conseguiram submeter a julgamento as numerosas violações dos direitos humanos, perpetradas durante a ditadura militar.
11 “anticolonialismo cultural”, “antirracismo”, “antimistificação política” e “antimistificação da arte”.
12 A ditabranda do general Geisel no poder e a abertura que seu sucessor, general Figueiredo, irá propor a partir de 1979.
13 “Onde a autobiografia se define por um limite temporal, o autorretrato aparece como uma totalidade sem fim, na qual nada pode ser dado de antemão, já que seu autor anuncia: Não narrarei o que fiz; direi quem sou”. Bellour, Raymond. Auto-retratos. Entre-imagens. Campinas: Papirus, 1997.