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→ an apparent world, by Jorge La Ferla
→ I world of meby Clarissa Diniz
→ Persistence of consciousness: marks of identity, by Cristina Tejo
→ Letícia Parente: video art and the mobilization of the body, by Claudio Costa
(notebook by Fernando Cocchiaralle - PDF, 1.5MB)
→ Measurements, inside and out, by Roberto Pontual (PDF, 56KB)
Letícia Parente: a videoarte e a mobilização do corpo
Claudio da Costa
O vídeo chegou relativamente cedo ao Brasil e seria rapidamente absorvido pelos artistas plásticos interessados em novas experimentações e meios que não os tradicionais, como a pintura e a escultura. Uma primeira geração de artistas de vídeo surge em 1974 no Rio de Janeiro, por ocasião de uma mostra de videoarte - realizada na cidade da Filadélfia, nos Estados Unidos – para a qual alguns cariocas foram convidados. O Rio se tornaria, então, pioneiro na videoarte no país, pela intermediação de Jom Tob Azulay, que trouxera um equipamento portapack dos Estados Unidos. Foi com esse aparelho que os artistas cariocas puderam iniciar suas experimentações de expansão das artes plásticas. São Paulo só começaria a produzir vídeos a partir de 1976, quando o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo adquiriu o equipamento e o disponibilizou para os artistas da cidade. A primeira geração de vídeoarte no Brasil incluía Sônia Andrade, Fernando Cocchiarale, Anna Bella Geiger e Ivens Machado. No ano seguinte, três outros artistas se juntariam àqueles: Paulo Herkenhoff, Letícia Parente e Míriam Danowski (Machado, 2003).
As artes plásticas no Brasil, fortemente vinculadas à cena internacional, viviam um momento muito rico, com os desdobramentos de problemas que passavam das condições espaciais da percepção às suas bases corpóreas. Vários artistas já haviam problematizado o espaço bidimensional da tela apresentando não-objetos no espaço da galeria que exigiam a participação do corpo do espectador, ora manipulando objetos, ora adentrando em espaços envolventes. Hélio Oiticica e Lygia Clark radicalizaram essa transformação ao promover o corpo como lugar, meio e suporte de suas expressões artísticas em trabalhos sensoriais. A experiência de novos suportes levara Hélio Oiticia a invenção dos Quase-cinema, série de trabalhos audiovisuais que utilizava projeção de slides, realizada em Nova York no início dos anos 70. Outros artistas também experimentavam essa expansão dos meios com filme de 16 mm ou super-8: Antônio Dias, Barrio, Iole de Freitas, Lygia Pape, Rubens Gerchman, Agrippino de Paula, Arthur Omar, Antônio Manuel e o próprio Oiticica (Canongia, 1981). Freqüentemente, para esses artistas, o interesse na imagem técnica vinha da possibilidade de se registrar novas experiências corporais. Iole de Freitas, na série Glass pieces/life slices (1974), apresentava múltiplas faces de seu corpo, fragmentado por espelhos. Lygia Pape, depois de participar lateralmente em cinema como programadora visual para Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade e Glauber Rocha, decide experimentar o super 8 na direção oposta àquela que considerava de “resultado amorfo, bem comportado e cinemanovista” (Canongia, 1981: 43). Com Eat me (1976), Lygia constrói uma montagem métrica, não dependente de ação dramática, a partir de dois planos-base de uma boca masculina que engole e expulsa uma pedra sobre a língua (Canongia, 1981).
Em todos esses casos em que há um forte investimento do corpo e da subjetividade, a montagem aparece como procedimento que interessa ao artista. Assunto de debate, no sentido de uma recuperação dos escritos de Eisenstein e Vertov pela crítica cinematográfica daqueles anos, a montagem torna-se procedimento integrante também na produção dos trabalhos dos artistas plásticos envolvidos com cinema. A montagem métrica - que segundo a reflexão de Eisenstein, soma-se à rítmica, à tonal, à atonal e à intelectual - utilizada por Lygia Pape é, dentre outros, um dos processos mais elementares na construção de conflitos e contrapontos (Eisenstein, 1990). Lygia Pape parece desejar antes criar um problema para a medida metricamente calculada colocada em contato com a forte conotação erótica do tema: o erotismo desmontando a racionalidade matemática.
No contexto dos anos 70 em que os artistas colocavam em dúvida a legitimidade dos suportes tradicionais e no qual afloravam também os questionamentos sobre a função da arte, o circuito e o mercado em que a obra se insere. Como fetiche de consumo e signo de status social, a obra de arte é entendida antes como parte de uma engrenagem do que objeto cultural significante. A Revista Malasartes do fim do ano de 1975 publicaria dois textos importantes relativo às questões que o meio artístico estava interessado no momento. O célebre artigo de Joseph Kosuth, de 1969, traduzido para a Malasartes, foi fundamental para os desdobramentos das artes plásticas de modo geral e, especificamente, para a arte conceitual. Kosuth levantava os problemas da separação entre a arte e a estética e perguntava-se sobre a função da arte. Tratava do estatuto do objeto artístico e da relevância, para o pensamento e para a produção de arte, do contexto institucional em que esta se encontra: o museu, a galeria, o curador, o crítico, o historiador, etc. - “a existência dos objetos, ou seu funcionamento dentro de um contexto de arte, é irrelevante para o julgamento estético” (Kosuth, 1975). O meio artístico torna-se consciente de que a obra de arte participa da constituição de um sistema de circulação e que seu valor não provém apenas de sua composição formal. O outro texto publicado na Revista Malasartes, do crítico Ronaldo Brito, esclarecia essa função do objeto artístico como fetiche para o mercado e para a legitimação de uma classe social (Brito, 1975).
Era um momento de questionar a experiência estética fundada nas formas sensíveis do objeto e no sentimento de gosto da recepção contemplativa. A problematização do objeto estético enquanto produto final levaria os artistas a valorizarem mais os processos de investigação, as mudanças e transformações intermináveis de uma obra sempre por vir. A crítica de arte, por sua vez, não podia mais analisar somente os elementos formais da composição de uma obra que discursa sobre seu próprio meio. A crítica haveria de incluir a recepção e o espaço no qual o trabalho se insere, as relações que a obra constitui com o contexto da arte. A obra tendia a desaparecer enquanto objeto de contemplação e tornava-se objeto de manipulação, espaço de participação e mobilização corporal, lugar de investimento e produção de subjetividades, pretexto para agenciamentos sociais, antropológicos, políticos e estéticos.
Com essa estética da desaparição em que a obra se vê desmaterializada, as reflexões, depoimentos, notas, escritos, o envolvimento corporal do artista e do espectador-participador farão parte do processo e do sentido da obra. Com isso surgem, no rastro da errância da obra, a performance e o corpo, indispensáveis, uma vez que o produto, o objeto final, tornava-se desobrigado. A tendência à dissolução do objeto leva muitos artistas a se interessarem por esse novo campo de expressão, o vídeo. A imagem-movimento era atraente para esse artista interessado nessa obra sempre desdobrada em registros fotográficos, fílmicos, literários, etc. O cinema, porém, tal como havia se estabelecido, colocava o artista-autor e o espectador em lugares distintos e a obra cinematográfica, ainda que questionando os sentidos e as identidades fixas, devolvia os atores vinculados ao processo da obra a seus lugares tradicionais. O cinema tinha seu espaço próprio para acontecer, a sala escura. Era preciso possibilitar a participação corporal, na produção do sentido, dos outros atores envolvidos no processo fílmico - os espectadores. Coisas inesperadas estavam por vir.
Apareciam novas tecnologias de registro eletrônico da imagem-movimento. Elas permitiriam fazer o que o cinema não era capaz: ver o registro da imagem no mesmo instante de sua produção. No que diz respeito às performances, o vídeo permitiria tornar, imediatamente, um trabalho de corpo um acontecimento de imagem, o que daria complexidade temporal ao evento presencial. Na imagem, a presença tornava-se problemática, desmaterializada, reflexiva e agenciadora de duas formas de presença, a física-referencial e a virtual-indicial. O vídeo viria somar às novas idéias vigentes da obra ausente, desmaterializada, que exigia do espectador, simultaneamente, elaborações conceituais, movimentos corporais, processamentos temporais, assimilação do sentido como marca e cicatriz da experiência.
É nesse contexto que os trabalhos de Letícia Parente surgem, tornando ainda mais complexa a relação com o espectador: suas performances não existiriam para uma platéia, mas tão somente para a câmera que a registrava. Um trabalho de vídeoarte não seria apresentado em salas escuras com espectadores sentados, mas em qualquer lugar onde houvesse o equipamento necessário. Por falta de recursos técnicos acessíveis aos artistas naquele momento, os vídeos produzidos pela primeira geração não seriam editados. Manteriam, ao contrário, apenas o registro do gesto performático do artista, o confronto da câmera com seu corpo - procedimento mais elementar dessa nova arte que surgia.
Câmera e corpo agem sem que um ou outro esteja vinculado à representação de uma ação dramática. Sem que algo seja propriamente representado no sentido dramático, o corpo faz alguma coisa. Ao comportamento do corpo se equivale um comportamento da câmera. Assim, aos gestos e atitudes de Letícia, correspondem gestos e atitudes da câmera que a vê. Enquanto Letícia faz suas ações, a câmera a enquadra consciente de si, mas como num filme caseiro e despretensioso. Não é mais o enquadramento o que importa, mas aquele registro, com todas as imperfeições, ausência de foco ou precisão. É a sede do registro, paradoxalmente, o que afeta a câmera e desfaz o propósito de representar aquilo que ela visa. O interesse da câmera é antes constituir a imagem que seja uma marca do evento, seu sentido como cicatriz e não uma significação. O objeto visado, o corpo da artista, faz alguns movimentos cotidianos e a ação desdramatizada não tem mais propriamente uma intenção auto-reflexiva. Ou melhor, não há uma ação desdramatizada que se desenvolve na frente do espectador consciente da câmera e dos processos de produção do filme. Há somente algumas ações físicas insignificantes que se apresentam para a câmera que as registra sem desprezo nem admiração. Os primeiros espectadores serão a pessoa com a câmera e o artista em performance.
Os primeiros vídeos de Letícia datam de 1974, sendo Marca Registrada, o mais conhecido e perturbador para a época. Nesse trabalho, a artista borda com uma agulha na sola do próprio pé a frase “Made in Brasil”. É interessante notar a ausência de composição, o desprezo pela estruturação, a improvisação tanto da câmera que observa quanto da performer que necessita refazer seus gestos quando um ponto de seu bordado se desfaz. O vídeo parece ter a única função de registrar aquele acontecimento. Ainda que a frase que Letícia borda em seu pé tenha sentidos simbólicos precisos vinculados ao contexto cultural e político da época, o que nos perturba é o sentido que jamais podemos fixar.
Havia um discurso cultural que privilegiava a noção “nacional-popular”. Havia, por outro lado, os artistas da geração 70 que problematizavam toda idéia de comunidade nacional, afirmando a diferença, a subjetividade e o corpo. Havia um governo repressor de um lado e a esperança de abertura política de outro. Havia a tristeza das mortes promovidas pela Ditadura e a esperança de um Brasil desenvolvido e de livre mercado. Havia as experimentações dos artistas conceituais e a crença num mercado para a arte internacional produzida no Brasil. Todas as contradições parecem se multiplicar nesse vídeo feito sem pretensão, sem estrutura, sem composição. Registrando em seu próprio corpo as múltiplas contradições do momento, Letícia afirma e rejeita os vários discursos vigentes na cena artística dos anos 70: a noção de obra de arte como objeto para um mercado de elite, a idéia de identidade nacional, a mulher de classe média, o cinema, a política, a Ditadura, a diferença, o sentimento de desprezo, a indiferença, a falta de sentido, a tristeza, a esperança etc.
Marca Registrada ironiza várias noções, conceitos e valores dos anos 70, criando estranhos paradoxos. Se a frase é uma referência à artista ou a sua obra, tudo está fora de lugar, porque é redundante e óbvio. A ironia é manifesta. Se a referência é o discurso vigente da identidade cultural unificada na comunidade imaginada da nação, o desprezo parece evidente uma vez que a inscrição é bordada na parte mais baixa de seu corpo. O fato de ser brasileira ou de participar dessa comunidade imaginada é o que menos importa. E se a referência da inscrição é a obra que produz, sua indiferença também é total, uma vez que é coisa a ser pisada. É negada a noção de obra como uma tela a ser pendurada ou um objeto a ser admirado. O que faz a obra é a experiência de estranhamento que ela é capaz de produzir. O ato de bordar, na cultura patriarcal brasileira, é função da mulher. Bordando sobre a sola do pé, Letícia afirma e rejeita a experiência da identidade feminina vigente em nossa cultura. Letícia produz todos esses movimentos, fazendo justamente o que é dela esperado. Vai ao encontro do esperado com a imagem do inesperado, causando uma experiência de estranhamento.
Para além dos sentidos simbólicos, há ainda outros indizíveis. Fazendo penetrar a fina agulha nas camadas superficiais de sua pele, invadindo a superfície de seu corpo com aquele instrumento pungente, Letícia desarticula silenciosamente uma cadeia de experiências, valores, conceitos e idéias enraizadas na cultura artística e na cena política do momento. Mais do que minar valores arcaicos substituindo-os com outros mais novos, Letícia dá mobilidade aos sentidos. Parece antes colocá-los a mover-se do que trocá-los por outros quaisquer que pudessem valer mais. Não há o novo a ser substituído pelo antigo, mas há movimento crítico, questionamento. São justamente os valores, sejam eles da arte, da cultura ou da política que estão em questão. Afinal, um trabalho artístico exposto sobre a sola do pé que tocará a terra, o chão, não é aceitável para os valores de uma cultura que acredita que a arte eleva o espírito.
Os trabalhos de Letícia revelam ações cotidianas simples. São os gestos e as atitudes de um corpo cotidiano que parecem interessar à Letícia Parente, o comportamento disciplinado de um corpo dócil que age cegamente comandado por ordens que ele mesmo parece desconhecer. Em Preparação (1974), a artista se prepara para sair e diante do espelho cobre os olhos e a boca com esparadrapos. Sobre eles, Letícia desenha outros olhos e outra boca. O que se revela nesses trabalhos é a afirmação de uma necessidade: desejar um corpo é inventar um outro sujeito, outros modos de ver e sentir. Outros comportamentos implicam em novas subjetividades. Essa é a política do corpo praticada por Letícia Parente em seus vídeos, o que mostra que o campo da estética não diz respeito somente ao gosto e às formas, mas a uma nova ordem para as artes. A arte se expande ao cotidiano, ao espaço da vida.
A política de identidades fluidas e de uma arte como experiência de um cotidiano estranhado surge também em Nordeste (1981). Vemos uma mala de couro rústico ser aberta e dentro dela duas cobras vivas sobre um lençol branco. A pessoa que abriu a mala manipula o lençol o que modifica a posição das cobras. Nada sobre o nordeste podemos ver nesse vídeo, nada sobre o sertão tão presente nas telas de nosso cinema desde os anos 60, nenhuma representação do outro. A identificação e representação não são mais possíveis, mas ainda assim é preciso inscrever sensações. A música dos Novos Baianos insere as experiências de Letícia Parente naquele momento pós-tropicalista em que a arte faz sentido enquanto experiência de expansão dos sentidos, das sensações e dos valores. Ao nomear Nordeste esse trabalho, Letícia não parece propor uma imagem da cultura nordestina, mas antes mobilizar a região de nosso corpo cultural ao qual se dá o nome de “Nordeste”.
Nordeste tem algo da estranheza de Marca registrada. Aqui, a agulha é substituída pela cobra. Surgem outra vez: a presença do corpo sem identificação de um rosto, o vínculo forte com o presente da cultura, a ausência de uma situação ou acontecimento representado. Ainda assim, alguma coisa está fortemente presente: um corpo, uma cultura (o nordeste canção), um país (Brasil), uma imagem. Quatro elementos disjuntivos que não podem ser sintetizados numa representação de nação ou de um sujeito. O vídeo, registrando a ação despretensiosa daquele que vemos na imagem, agencia forças. Mobilizando um corpo, arregimenta subjetividades. Movendo as sensações perfurantes da agulha em Marca Registrada ou os sentidos de má índole da cobra, o que se percebe é uma total ausência de Obra e de Autor, ainda que a pessoalidade de Letícia, sua proveniência de classe média educada, afinada com a cultura popular-urbana estejam presentes.
Letícia Parente não produziu muito. Antes de Nordeste, teria produzido alguns vídeos sem pretensão de representação ou construção de obra. Parece que seus trabalhos de simples registros de performances não desejam mesmo encenar nada, mas tão somente produzir algum agenciamento contextual, subjetivo, político, mas sempre mobilizando seu próprio corpo ou outros corpos. Em Preparação II (1975), registra a situação do processo de sua saída do país. Entendemos o contexto pelas fichas do Ministério da Saúde que a artista preenche após cada uma das vacinas que aplica em seu próprio braço. Como em seus outros vídeos, a única tomada registrada pelo aparelho não mostra o rosto da artista, sempre fora do campo de visão da imagem. Nesse trabalho de 1975, a artista demonstra claramente seu interesse por agenciar questões éticas e políticas além das artísticas, através da mobilização de seu próprio corpo. Aplica-se cada uma das vacinas contra o “racismo”, o “colonialismo cultural”, a “mistificação política” e a “mistificação da arte”. Fica claro o contexto histórico em que a artista se encontra e o desejo de ir contra o movimento de fetichização do objeto da arte que o mercado necessita. Mas o que parece estar em jogo é a relação com o cotidiano e o registro de ações não necessariamente estéticas ou dramáticas.
Se por um lado não se fetichiza o trabalho artístico operando uma forte ausência de interesse estético, por outro a pouca nitidez da imagem dos vídeos e a ausência do rosto da artista no campo de visão nos revela pouco do referente. Dá-se uma grande importância ao registro da ação que, desdobrada em imagem mobiliza um corpo, suas sensações desconhecidas, as forças de seu próprio contexto temporal-histórico e a ordem de um tempo que se põe em ausência na imagem. Um presente desdobrado em imagem, um corpo que se faz ausente, uma ação que não faz obra são agenciamentos que problematizam e mobilizam o pensamento, mas não chegam a se transformar em uma reflexão analítica. Não se pode dizer que os vídeos de Letícia sejam propriamente auto-reflexivos porque falta-lhes a nitidez ilusionista do cinema ou porque os drop-outs comentam o meio enquanto dispositivo eletrônico. Seus trabalhos são reflexivos porque produzem um pensamento agenciador de forças desconhecidas e heterogêneas, isto é, tempos, corpos, culturas e contextos. Seus vídeos são, nesse sentido, marcas dos eventos e das ações que se propõe atuar, índice do contexto histórico que se impõe à imagem, mas antes de tudo agenciamento de potências desconhecidas de corpos e sujeitos.
Registrar as ações, os processos das performances e deixar o trabalho da câmera aparente assim como as imperfeições da imagem não quer dizer nem neutralidade do meio nem tampouco crença na reflexividade analítica do trabalho artístico. Não há maior consciência, por parte de quem olha, sobre um produto por que ele apresenta seus processos de produção. As marcas do processo acabam por se perder, diminuir sua ação sobre o pensamento, quando elas são tornadas estéticas. Assim, parece mais importante para Letícia Parente agenciar corpos, subjetividades, contextos culturais, éticos e temporais, mobilizar forças heterogêneas, do que refletir analiticamente o dispositivo ou meio com qual trabalha. Por isso, o registro é antes a síntese de um processo múltiplo de agenciamentos, a imagem pensamento ou a imagem-cicatriz que desdobra as forças heterogêneas em jogo na produção e no contexto do trabalho artístico.
Letícia Parente não produziu muito. Seus últimos trabalhos seriam aqueles feitos para 16ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1981 e para Projeto Vermelho, da Faap em São Paulo, em 1986. A artista, entre outros de sua geração, colocou questões importantes para a arte do vídeo: a mobilização do corpo em ações cotidianas diante da câmera, a necessária convivência entre presença e ausência no trabalho artístico, em especial, na imagem eletrônica, o agenciamento ético do trabalho estético e a importância de interferir no processo de produção de subjetividades. Mas antes de tudo: o vídeo tem sua potência no registro de ações e não na representação de uma ação. Registrar, porém, não é tomar um objeto ou um corpo como dado, mas antes mobilizar, dar movimento, permitir a oscilação dos sentidos, das sensações e dos pensamentos heterogêneos cuja síntese inesperada se dará naquele que olha e participa do trabalho artístico. E que não se confunda síntese com unidade, pois diante da ausência de obra e de autor, a única unidade é a da pessoa, do corpo individual, sempre contraditória pela diversidade de sensações que em sua subjetividade se mobiliza.
Bibliografia
BRITO, Ronaldo. “Análise do circuito”. In: Malasartes, Nº 1, set./out./nov., 1975.
CANONGIA, Ligia. Quase Cinema: cinema de artista no Brasil, 1970/80. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981.
EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
KOSUTH, Joseph. “Arte depois da filosofia”. In: Malasartes, Nº 1, set./out./nov., 1975.
MACHADO, Arlindo. Made in Brasil: três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2003.